#11. O lugar ao qual se volta
Ou: minha avó; as histórias que herdamos; e um podcast novinho em folha
Qual é esse lugar ao qual se volta?
Eu lembro do quadro na parede, logo acima do sofá da casa da minha avó: uma montanha iluminada de casas, o mar azul cercando quase todo o espaço, um ou outro barquinho de pescadores.
Minha avó tem 20 anos quando sai da Ilha rumo ao Rio de Janeiro, uma menina de braço dado com o homem com quem acabou de se casar, o meu avô. Entra em um navio deixando tudo que conhecia até então para trás.
Essa é a história que ela sempre contou, assim resumida mesmo. E talvez ela nunca tenha contado mais detalhes porque, bem… essa história era mentira.
Minha avó não migra para o Brasil quando meu avô vem para cá. Ela vai ficar dois anos ainda na Ilha. E, quando migra, traz a filha de pouco mais de um ano no colo. Não sei se elas vieram sozinhas, se algum conhecido estava no navio com elas. Não sei se minha avó sentiu medo naqueles dias todos dentro de um navio. Se estava feliz. Se tinha comida suficiente. Se ela trouxe alguma bagagem.
Eu não sei quase nada.
Quando eu era criança e pedia para meu avô me contar histórias, ele apenas repetia três vezes, com um ritmo todo próprio: “história, história, história”. Minha avó, por sua vez, dizia: “mas não tem nada pra contar, minha neta”.
Por que eles não me contavam as histórias deles?
Comecei 2025 com uma obsessão. Descobri o site do Arquivo Regional da Madeira, onde há um campo de registros de casamentos. Com os nomes dos meus avós, iniciei as buscas. As datas batiam: eles se casaram em um dia de março de 1952. Procurei pelos nomes dos meus bisavós. Cheguei até à possível data de casamento dos pais da minha bisavó, em 1887. Talvez não sejam eles, e sim algum outro casal com os mesmos nomes. Mas é provável que sejam, é possível. E o possível é também onde vou conseguir chegar com essa história.
Procurei pelo endereço preenchido em um dos documentos mais antigos da minha avó. Foi ali, ou muito perto dali, o lugar onde minha mãe nasceu. Onde minha avó morou nos primeiros anos no Brasil.
Procurei fotos do navio que trouxe meu avô, vindo de Portugal.
Repito e repito e de novo. Por que eles não me contavam as histórias deles?
Quando comecei a escrever meus Relatos Mínimos, há alguns meses, eu não sabia bem sobre o que queria escrever. Mas sabia que eram essas histórias, as minhas histórias, as que eu escreveria por aqui, de um jeito meio despreocupado, quase uma tentativa de voltar aos blogs do início dos anos 2000.
Mas só isso não seria suficiente. Nunca é. Então decidi colocar outro projeto no mundo: o podcast Relatos Mínimos.
Quais são as histórias de vida de quem vive de contar histórias?
Com essa pergunta em mente, entrevistei artistas dos livros e dos palcos, em busca das histórias mais marcantes de cada pessoa. São os meus Relatos Mínimos, agora também em formato de entrevista, de podcast.
O teaser já está disponível. Dá pra escutar no Spotify, na Apple Music e nos principais tocadores de áudio. O primeiro episódio chega no dia 3 de julho, mas aproveita pra já seguir o programa e ativar o sininho pra não perder nenhuma história.
Minha avó voltou algumas vezes para a Ilha. Ela migrou por conta da pobreza, mas acho que, se ela pudesse ter escolhido, nunca teria saído de lá.
Já eu, sempre que preciso voltar a algum lugar, acabo escolhendo a escrita.
*Antes de acabar… dois convites e uma pergunta
Quer conversar sobre literatura a partir de um olhar feminista? Se inscreve no nosso Encontro de Leituras de julho, que acontece dia 02/07, às 19h30 (online).
No Instagram do podcast Relatos Mínimos, vou publicar fotos e notícias dos bastidores de gravação, além de vídeos com trechos exclusivos das entrevistas. Segue a gente lá!
Conhece histórias marcantes de artistas dos livros ou dos palcos e quer sugerir entrevistas pro podcast Relatos Mínimos? Comenta aqui pra eu saber!
Quando pequena eu morria de vergonha pq estudava no Liceu Pasteur e geral era descendente de europeus e tinha as historias dos avos, terriveis ou lindas, mas sabia exatamente qual eram e qual era o sobrenome, que tb carregavam com orgulho e suas sílabas dificieis. Sempre soube da minha historia ate meus bisavos (e irmaos de bisavos, e etc etc), mas sempre foram daqui. Sempre historias chãs, sem o glamur de uma terra longinqua e um nome que trava a lingua. Soares quantos por cento nao tinha na lista telefonica? Demerou demais pra eu fazer as pazes com isso. Mais do que o ridiculamente aceitavel.