(antes de começar, um recadinho: tá sabendo do nosso Encontro de Leituras? O primeiro acontece semana que vem e vou adorar te encontrar lá. Espia os detalhes ao final do texto e… boa leitura!)
Ele estava em um evento quando afirmou: “tenho vontade de enforcá-la”.
E nada foi feito.
Busco no dicionário o significado da palavra “enforcar” e me surpreendo com uma gíria: enforcar como sinônimo de “casar-se”. Talvez eu não devesse me assustar com a aproximação (mas se você, como eu, ficou em choque por um instante, confere lá no Aulete Digital).
Antes de chegar ao lugar, a esse lugar onde supostamente devemos nos colocar, quero falar sobre o tempo.
Um outro tempo.
Um tempo em que éramos consideradas bruxas.
Eu, você ou qualquer mulher que expressasse conhecimentos ou enfrentasse o modelo estabelecido: bruxa.
O lugar que nos cabia: a fogueira.
Mas o tempo passou. Chegamos ao século 20. O cenário: teu quarto de infância. Tua mãe lê um conto de fadas pra você dormir. Há uma bruxa ali também. Ela é feia, má, tem verrugas no nariz.
E aí, talvez nem precise perguntar: qual criança escolhe ser a bruxa feia, má e com verrugas no nariz se puder ser a princesa linda, boa e que, por ser tão linda e boa, no final se casa com o príncipe?
Tudo é narrativa. Tudo é construção. Qual é a narrativa que vendem pra gente desde nossos primeiros anos ouvindo histórias antes de dormir?
Lá quando se criavam as bases do que hoje chamamos de capitalismo, teve início a caça às bruxas. Esse momento, para Silvia Federici,
[…] redesenhou o papel social da mulher e definiu uma nova e específica forma de extração de valor e de produção de riqueza.
Funcionou mais ou menos assim: para crescer cada vez mais, o novo sistema precisava de mais gente. Com gente sobrando, dava para explorar direitinho os que conseguissem trabalho (se você pode ser substituído a qualquer momento, talvez você pense duas vezes antes de reclamar). Para ter mais gente e para você trabalhar incontáveis horas fora de casa, também é preciso alguém procriando e cuidando das crianças até elas se tornarem independentes. Entendeu a lógica?
[…] a subordinação social da mulher foi estabelecida como resultado da separação entre a esfera da produção de mercadorias [...] e a esfera da reprodução das condições de existência.
A tradução disso é: homens vão para a fábrica, criam mercadorias. Mulheres ficam em casa, criam pessoas (que depois crescem e vão para a fábrica, criar mercadorias).
Mas ainda sobra uma questão: como convencer as mulheres de que o lugar delas é a casa, de que o lugar delas é apenas na criação dos filhos, fazendo todo o trabalho invisível que permite que os homens estejam lá nas fábricas? E com uma cereja do bolo que não pode ser deixada de lado: tudo isso sem ganhar nem um centavo, como se todo o trabalho de cuidado fosse apenas vocação.
A resposta é a fogueira. Ou a mulher aceita o lugar que deram a ela ou a gente apela pra fogueira.
A caça às bruxas representa, nesse quadro, um violento dispositivo de disciplinamento das mulheres para uma nova forma de trabalho que, na sociedade capitalista nascente, era desvalorizada e subalternizada precisamente porque excluída da relação salarial. Trabalho que nem sequer era visto como tal, tornava-se um atributo “natural” das mulheres e descrevia uma forma total ou absoluta de exploração e uma inestimável fonte de produção de valor.
E as cerejas desse bolo não acabam. Porque há mais camadas na história, sempre há mais camadas nas histórias.
Nesse sistema (o nosso), o homem que trabalha para a criação de mercadorias também é explorado. Ele trabalha até não aguentar mais. E por que ele não se revolta contra quem o explora?
Simples: porque ele acredita fazer parte desse grupo de poder, ele reconfigura a violência sofrida direcionando essa violência para a esposa, para as mulheres, para os filhos.
O mecanismo de delegação, com o qual o capitalismo concede aos assalariados o controle dos não assalariados – assim como dá aos maridos o poder de controlar e disciplinar as mulheres (“esta comida está uma porcaria!”, “as crianças não tomaram banho!”, “olha como está esta casa!”) –, explica a grande tolerância que a sociedade do capital sempre teve quando confrontada com a violência doméstica enquanto parte necessária da disciplina do trabalho doméstico.
É a famosa ciranda do homem que apanha do chefe, chega em casa e bate na esposa, que depois bate no filho, que depois puxa o rabo do cachorro…
Mas precisamos voltar ao começo. Precisamos voltar à primeira história. Já há muitas camadas nessa história.
Foi há uns meses, aquele evento do “tenho vontade de enforcá-la”. E nada foi feito.
Ontem, o homem lá da primeira frase reencontrou a mulher que ele queria enforcar. Imagina o cenário: uma discussão entre um senador da República e uma ministra de Estado. Ele preside a mesa, tem a posse do microfone, se sente o poderosão. E decide silenciar o microfone dela, diversas vezes. Espera que ela aceite, que ela se cale quando ele a impede de continuar falando. Diz para ela se colocar em seu lugar.
O problema (para ele) é que ela não aceita.
Ela fala.
Ela não para de falar.
Ela fala mesmo quando o microfone é desligado.
Ela fala mesmo quando ele manda ela se calar.
O problema (para ele) é que hoje a gente sabe que a fogueira queima é quando a gente não fala.
O problema (para ele) é que hoje a gente sabe exatamente qual é o nosso lugar.
Ela, a ministra de Estado, sabe exatamente qual é o lugar dela.
E nesse lugar, que é o nosso, a gente fala. A gente segue falando mesmo quando querem nos calar. Mesmo quando desligam nossos microfones. Mesmo quando nos enforcam (metaforicamente ou literalmente).
Entre a bruxa e a princesa, escolhemos ser a fogueira. Na esperança de queimar o sistema que sempre nos mandou calar.
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04.06, às 19h30 (horário de Brasília)
Na arquibancada, de Elvira Vigna
02.07, às 19h30
Carta aos gregos, de Danielle Magalhães
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